J Pediatr (Rio J). 2016;92(6):631 -637
ARTIGO ORIGINAL
Acute kidney injury in HIV-infected children: comparison of patients according to the use of highly active antiretroviral therapy^
Douglas de Sousa Soaresa, Malena Gadelha Cavalcantea, Samille Maria Vasconcelos Ribeiroa, Rayana Café Leitaoa, Ana Patricia Freitas Vieiraa, Roberto da Justa Pires Netoa, Geraldo Bezerra da Silva Juniorb e Elizabeth de Francesco Dahera*
CrossMark
a Universidade Federal do Ceará (UFC), Faculdade de Medicina, Departamento de Medicina Interna, Fortaleza, CE, Brasil b Universidade de Fortaleza (Unifor), Faculdade de Medicina, Centro de Ciencias da Saúde, Fortaleza, CE, Brasil
Recebido em 5 de julho de 2015; aceito em 2 de marco de 2016
KEYWORDS
Acute kidney injury; HIV;
Children; HAART
Abstract
Objective: To assess clinical and laboratory data, and acute kidney injury (AKI) in HIV-infected children using and not using highly active antiretroviral therapy (HAART) prior to admission. Methods: A retrospective study was conducted with HIV-infected pediatric patients (<16 years). Children who were using and not using HAART prior to admission were compared. Results: Sixty-three patients were included. Mean age was 5.3±4.27 years; 55.6% were females. AKI was observed in 33 (52.3%) children. Patients on HAART presented lower levels of potassium (3.9±0.8 vs. 4.5±0.7mEq/L, p = 0.019) and bicarbonate (19.1 ±4.9 vs. 23.5 ±2.2mEq/L, p = 0.013) and had a higher estimated glomerular filtration rate (102.2 ±36.7 vs. 77.0±32.8mL/min/1.73m2, p = 0.011) than those not on HAART. In the multivariate analysis, the use of HAART prior to the admission was a protective factor for AKI (p = 0.036; OR = 0.30; 95% CI = 0.097-0.926).
Conclusion: AKI is a common complication of pediatric HIV infection. Use of HAART prior to the admission preserved glomerular filtration and was a protective factor for AKI, but increased medication side effects, such as hypokalemia and renal metabolic acidosis. © 2016 Published by Elsevier Editora Ltda. on behalf of Sociedade Brasileira de Pediatria. This is an open access article under the CC BY-NC-ND license (http://creativecommons.org/licenses/ by-nc-nd/4.0/).
DOI se refere ao artigo: http://dx.doi.org/10.1016/jjped.2016.03.009
* Como citar este artigo: Soares DS, CavalcanteMG, RibeiroSM, Leitao RC, Vieira AP, Pires Neto RJ, et al. Acute kidney injury in HIV-infected children: comparison of patients according to the use of highly active antiretroviral therapy. J Pediatr (Rio J). 2016;92:631 -7.
* Autor para correspondencia.
E-mail: ef.daher@uol.com.br (E.F. Daher).
2255-5536/© 2016 Publicado por Elsevier Editora Ltda. em nome de Sociedade Brasileira de Pediatria. Este é um artigo Open Access sob uma licencia CC BY-NC-ND (http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/).
Lesáo renal aguda em criancas com HIV: estudo comparativo entre pacientes com e sem terapia antirretroviral altamente ativa
Resumo
Objetivo: Avaliar dados clínicos e laboratoriais, bem como ocorrencia de lesao renal aguda (LRA), em criancas HIV positivas com e sem uso de terapia antirretroviral altamente ativa (TARV) antes da admissao.
Métodos: Estudo retrospectivo em pacientes pediátricos HIV positivos (< 16 anos). Foram comparadas as criancas que estavam em uso com aquelas sem uso de TARV prévia a internacao. Resultados: Foram incluidos 63 pacientes, com média de 5,3 ±4,27 anos, 55,6% do sexo femi-nino. LRA foi encontrada em 33 casos (52,3%). Os pacientes que usavam TARV apresentaram menores níveis de potássio (3,9 ±0,8 vs. 4,5 ±0,7 mEq/L, p = 0,019) e bicarbonato (19,1 ±4,9 vs. 23,5 ±2,2 mEq/L, p = 0,013), bem como maior taxa de filtracao glomerular estimada (102,2 ±36,7 vs. 77,0±32,8mL/min/1,73m2, p = 0,011), do que o pacientes sem TARV prévia. Na análise multivariada o uso de TARV prévia a internacao foi fator protetor contra LRA (p = 0,036; RC = 0,30; IC de 95% = 0,097-0,926).
Conclusao: A LRA é uma complicacao comum da infeccao pediátrica pelo HIV. O uso de TARV antes da internacao foi associado a melhor taxa de filtracao glomerular e foi fator de protecao contra LRA, porém desencadeou efeitos colaterais como hipocalemia e acidose metabólica. © 2016 Publicado por Elsevier Editora Ltda. em nome de Sociedade Brasileira de Pediatria. Este e um artigo Open Access sob uma licenca CC BY-NC-ND (http://creativecommons.org/licenses/ by-nc-nd/4.0/).
PALAVRAS-CHAVE
Insuficiencia renal
aguda;
Criancas;
Introdujo
De acordo com o Programa das Nacoes Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), estimou-se que aproximadamente 35 milhoes de pessoas em todo o mundo eram portadoras do HIV ou tinham a síndrome da imunodeficiencia adquirida (Aids) em 2012. Além disso, o número anual de novas infeccoes por HIV em 2012 foi calculado em aproximadamente 2,5 milhoes. Mais de 12% delas (330.000 casos em todo o mundo) ocorreram na populacao pediátrica com menos de 15 anos. Em 2011, 230.000 criancas morreram devido ao HIV/Aids ao redor do mundo.1
A prevalencia de doencas renais em pacientes pediátricos infectados por HIV varia substancialmente entre regioes e períodos. Na era anterior á terapia antirretroviral altamente ativa (TARV), a maioria das criancas infectadas nos EUA cos-tumava falecer de complicaccoes nao renais da Aids, como infeccoes oportunistas (IOs). Esse fenómeno ainda é comum em alguns países em desenvolvimento, onde essa terapia nao está disponível para todos os pacientes. Contudo, após o estabelecimento da TARV em países desenvolvidos, o número de criancas infectadas por HIV que precisam de terapia renal substitutiva aumentou consideravelmente.2 A infeccao pelo HIV com complicacoes renais atualmente está entre as dez doenccas nao infecciosas mais comuns, ocorre em crianccas e adolescentes infectados pelo HIV no período perinatal na era da TARV, com uma taxa de incidencia de 2,6 a cada 100 pacientes.3
Os pacientes com HIV tem risco elevado de desenvolver lesao renal aguda (LRA) e doenca renal crónica (DRC) devido a vários fatores.4 Nesse contexto, o espectro de doencas renais na populacao pediátrica infectada por HIV é diferente de adultos e inclui: doencas glomerulares crónicas, como nefropatia associada ao HIV; doenca renal do complexo
imune associada ao HIV; alguns tipos de microangiopatias trombóticas, como formas atípicas de síndrome hemolítico--uremica e púrpura trombocitopenica; doencas tubulares e LRA.5
O objetivo deste estudo é avaliar os dados clínicos e laboratoriais, bem como a ocorrencia de LRA, pelos critérios pediátricos modificados de RIFLE (risk, injury, failure, loss, end-stage kidney disease) (pRIFLE) em criancas infectadas por HIV e comparar grupos de acordo com o uso de TARV antes de internacao hospitalar.
Pacientes e métodos Ambiente e seleqáo de pacientes
Este é um estudo retrospectivo feito com criancas infectadas por HIV internadas no Hospital Sao José de Doencas Infecciosas, no Nordeste do Brasil, de janeiro de 2007 a dezembro de 2012. Todas as criancas com menos de 16 anos com soro-logia confirmada para infeccao por HIV foram incluídas. Essa é a mesma faixa etária para a qual a equacao de Schwartz foi validada.6 Os pacientes com histórico de doencas renais anteriores, hipertensao arterial, diabetes mellitus, nefro-litíase, uso de medicamentos nefrotóxicos (exceto TARV) e outras comorbidades que podem afetar a funcao renal foram excluídos.
Parámetros estudados
Foram analisadas características demográficas como idade e sexo, bem como o tempo de internacao, coinfeccoes, uso de TARV e manifestares clínicas na internacao, dados laboratoriais, exigencia de diálise e mortalidade. As investigares
clínicas incluíram um registro de todos os sinais e sintomas clínicos apresentados por pacientes na internacao e durante o tempo de internacao.
Os dados laboratoriais incluíram avaliacoes de crea-tinina sérica (Cr), ureia (Ur), sódio (Na), potássio (K), albumina (Alb), alanina aminotransferase (ALT), aspar-tato aminotransferase (AST), lactato desidrogenase (LDH), hemoglobina (Hb), hematócrito (Ht), plaquetas, leucócitos, linfócitos, pH sérico (pH), pressao parcial do CO2 (pCO2), bicarbonato (HCO3), pH da urina e densidade da urina. A carga viral média (CV) e a contagem de CD4 também foram avaliadas. Os valores de CV = 100.000 cópias/mm3 e a contagem de CD4 = 200/mm3 foram estabelecidos como pontos de corte a fim de comparar pacientes com uso de TARV e pacientes sem uso de TARV, pois esses valores foram previamente associados ao desenvolvimento de LRA e a resultados insatisfatórios.7
Definigóes
A lesao renal aguda foi definida de acordo com critérios pediátricos do RIFLE (pRIFLE) com o uso da equacao de Schwartz para calcular a taxa de filtracao glomerular estimada (TFGe).6 As categorias de pRIFLE incluem:8,9
- Risco: reducao da TFGe em 25% ou diurese < 0,5 mL/kg/h por 8 horas.
- Lesao: reducao da TFGe em 50% ou diurese < 0,5 mL/kg/h por 16 horas.
- Falencia: reducao da TFGe em 75% ou TFGe<35mL/min/1,73 m2 ou diurese < 0,3 mL/kg/h por 24 horas ou anúria por 12 horas.
- Perda: falencia persistente > 4 semanas.
- Estágio final da doenca renal: falencia persistente > 3 meses.
Uma TFGe básica de 120mL/min/m2 foi atribuida a todas as crianccas conforme relatado anteriormente, pois nenhuma das criancas apresentou níveis de creatinina sérica disponí-veis medidos até 3 meses antes da internacao.8,9 A TFGe das crianccas foi calculada com a creatinina sérica na internaccao hospitalar. O percentual de queda da TFGe foi avaliado [100 x (TFGe básica - TFGe na internacao)/TFGe básica] para determinar a categoria pRIFLE. Os pacientes foram classi-ficados de acordo com a categoria pRIFLE na internacao. Devido á ausencia de dados antropométricos nos prontuá-rios, a estatura média de cada idade e sexo foi obtida de dados de Crescimento da Organizacao Mundial de Saúde (OMS) para calcular a TFGe.1011
A oligúria foi definida como diurese < 1 mL/kg/h em neonatos (0a 12 meses) e< 0,5 mL/kg/h em criancas que haviam sido hidratadas de maneira efetiva. A diálise foi indicada nos pacientes que continuaram oligúricos após a hidratacao efe-tiva, nos casos em que a uremia foi associada a insuficiencia respiratória hemorrágica ou grave e naqueles com hipercale-mia ou acidose metabólica refratária a tratamento clínico. A diálise foi indicada nos pacientes que continuaram oli-gúricos após a hidrataccao efetiva, com rápida elevaccao do nitrogenio ureico sanguíneo (estado de hipercatabolismo), nos casos em que a uremia foi associada a insuficiencia
respiratória hemorrágica ou grave e naqueles com hiperca-lemia ou acidose metabólica refratária a tratamento clínico.
As crianccas foram divididas em dois grupos: aquelas que usavam a TARV antes da internacao e aquelas que nao esta-vam. Os dados demográficos, clínicos e laboratoriais dos dois grupos foram comparados.
Tratamento
Os medicamentos da TARV usados no tratamento foram: zidovudina (AZT), didanosina (ddI), lamivudina (3TC), esta-vudina (D4T), abacavir (ABC), fumarato de tenofovir disoproxil (TDF), lopinavir (LPV), nelfinavir (NFV), saquina-vir (SQV), ritonavir (RTV), amprenavir (APV), efavirenz (EFZ) e nevirapina (NVP), de acordo com protocolos do Ministério da Saúde.
Análise estatística
O software SPSS para Windows (IBM Corp. Released 2011. IBM SPSS Statistics for Windows, versao 20.0, EUA) foi usado para a análise estatística. O teste qui-quadrado foi usado para analisar as frequencias nos grupos dos pacientes. Todas as variáveis independentes foram testadas para verificar a distribuicao normal com o teste de Kolmogorov--Smirnov. As diferencas entre duas variáveis independentes foram avaliadas com o teste t de Student ou o teste de Mann-Whitney, conforme adequado. Os dados foram expressos em médias ± DP e p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo.
Uma regressao logística multivariada foi feita para analisar os possíveis fatores de risco associados á LRA. Ini-cialmente, uma análise univariada foi feita com todas as variáveis dicotomicas disponíveis, incluindo sexo, presenca de cada sintoma e comorbidades, uso da TARV, carga viral > 100.000 cópias e contagem de CD4< 200/mm3. Esses parámetros foram avaliados para verificar a diferenca significativa entre grupos com LRA e sem LRA por meio do teste qui-quadrado e das tabulacoes cruzadas. Em segundo lugar, os parámetros incluídos no modelo multivariado foram aqueles que apresentaram nível de significáncia (p < 0,05) na análise univariada. Apenas um deles (uso de TARV) foi significativamente diferente. Assim, ele foi avaliado como fator de risco de LRA por meio do cálculo da razao de chance (RC) ajustada e intervalo de confianca de 95% (IC de 95%).
Ética
O protocolo do estudo foi analisado e aprovado pelos Comités de Ética do Hospital Universitário Walter Cantídio e do Hospital Sao José de Doencas Infecciosas.
Resultados
Foram incluídas 63 criancas, com média de 5,3 ±4,27 anos (intervalo de 1 a 14); 44 (69,8%) tinham menos de 7; 35 (55,6%) eram do sexo feminino; 43 (68,3%) usavam TARV antes da internacao, ao passo que 20 (31,7%) nao usavam. Entre todos os pacientes que usavam TARV, 37 (58,7%) usavam Lamivudina, 31 (49,2%) Zidovudina, 16 (35,4%)
Tabela 1 Dados demográficos, manifestacóes clínicas, situaçao de infecçâo e resultados de criancas portadoras de HIV de acordo com o uso de TARV
TARV (n = 43) Sem TARV (n = 20) P
Idade (anos) 6,3 ±4,1 3,1 ±3,8 0,002
Masculino 20 (46,6%) 12 (60%) 0,786
Feminino 23 (53,4%) 8 (40%) 0,786
Internacao (dias) 35,4 ±66,2 31,4 ±33,2 0,088
Sintomas e sinais (%)
Febre 35 (81,3%) 17 (85%) 1,000
Tosse 30 (69,7%) 13 (65%) 0,775
Dispneia 16 (37,2%) 6 (30%) 0,777
Diarreia 16 (37,2%) 7 (35%) 1,000
Vómito 15 (34,8%) 3 (15%) 0,139
Perda de peso 3 (6,9%) 3 (15%) 0,372
Infeccôes associadas (%)
Pneumonia 20 (46,6%) 8 (40%) 0,786
Tuberculose 3 (6,9%) 3 (15%) 0,372
Varicela 3 (6,9%) 1 (5%) 1,000
Situacao de infeccao (%)
Carga viral média > 100.000 cópias/mm3 9 (20,9%) 9 (45%) 0,124
Linfócitos CD4 < 200/mm3 6 (13,9%) 6 (30%) 0,162
Resultados (%)
Diálise 1 (2,3%) 0 1,000
Falecimento 1 (2,3%) 0 1,000
Idade e tempo de internacao apresentados como média ±DP. O resto dos dados é apresentado como um número (percentual). Foram usados o teste t de Student e o teste qui-quadrado. Os valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
Lopinavir e cinco (7,9%) Tenofovir. O tempo de internaçâo variou entre 1 e 352 dias (média de 34,2 ±57,8 dias). Um paciente precisou de hemodiálise (3,2%) e um faleceu (3,2%). Nenhum precisou de tratamento intensivo. Apenas 16 tiveram amostras de urina coletadas. Uma delas apresentou hematúria microscópica e três apresentaram proteinúria, porém nenhuma proteinúria na faixa nefró-tica. A comparacâo de dados demográficos, principais sinais e sintomas, infectes relacionadas, estado imunológico e resultados entre os dois grupos está resumida na tabela 1. Entre todos os pacientes, as infectes oportunistas (lOs) mais frequentes foram pneumonia (44,4%), tuberculose pulmonar (9,5%) e varicela-zóster/catapora (6,3%).
Ao comparar os grupos, foi observado que os pacientes que usavam TARV apresentaram níveis significativamente menores de bicarbonato sérico (19,1 ±4,9 vs. 23,6±2,2 mEq/L, p = 0,013) e potássio sérico (3,9±0,8 vs. 4,5 ±0,7 mEq/L, p = 0,019) do que aqueles que nâo usavam TARV, respectivamente. Além disso, os pacientes que nâo usavam TARV apresentaram níveis significativamente mai-ores de AST (123,1 ±189,9 U/L vs. 39,8±26,7, p = 0,008) e de ALT (77,9 ±102,8 U/L vs. 25,3 ±21,5, p = 0,001) do que aqueles que usavam TARV, respectivamente. Além disso, a TFGe estava consideravelmente mais elevada em pacientes com uso de TARV do que em pacientes sem uso de TARV (102,2 ±36,7 vs. 77,0±32,8mL/min/1,73 m2, p = 0,011). Nâo houve diferença significativa entre os dois grupos na comparacâo do percentual de pacientes que apresentaram CD4<200/mm3 e CV> 100.000 cópias/mm3.
Uma comparaccao de dados laboratoriais entre os grupos é apresentada na tabela 2.
A LRA foi observada em 33 (52,3%) criancas. Elas foram classificadas como risco (19; 57,5%), lesao (13; 39,4%) e falencia (1; 3,1%). A prevalencia da LRA foi menor naquelas com uso de TARV do que naquelas sem uso de TARV (41,86% em comparacao com 75%, p = 0,037). Em uma análise mul-tivariada, o uso da TARV antes da internacao foi um fator protetor contra LRA (p = 0,036; RC = 0,30; IC95% = 0,0970,926). A comparacao da prevalencia de LRA entre os grupos é apresentada na tabela 3.
Discussao
Este é o primeiro estudo a avaliar os dados demográficos, clínicos e laboratoriais das crianccas infectadas pelo HIV internadas em um hospital de doenccas infecciosas em Fortaleza, Ceará, Brasil, com foco na funcao renal e no desenvolvimento da LRA. Observamos que a TARV parece ser um fator protetor contra a LRA em criancas portadoras de HIV.
No presente estudo, a idade média das crianccas era de 5,3 anos, com a predominancia de meninas, o que é seme-lhante a estudos anteriores que avaliaram a doencca renal em criancas infectadas por HIV.12"14 Além disso, os sintomas mais prevalentes no presente estudo foram febre e tosse, que refletem as principais infeccoes associadas, principal causa da internaccao. Em dois estudos pediátricos recentes,
Tabela 2 Comparacao de dados laboratoriais entre crianças portadoras de HIV de acordo com o uso de TARV
TARV (n = 43) Sem TARV (n = 20) P
Carga viral média (103 copias/mm3) 82,18 ± 143,93 209,01 ± 223,14 0,157
Contagem de CD4 (/mm3) 695,7 ± 615,6 875,5 ± 928,6 0,472
pH 7,3 ± 0,2 7,4 ± 0,1 0,548
PCO2 (mmHg) 33,2 ± 13,0 36,3 ± 3,2 0,486
HCO3 (mEq/L) 19,1 ± 4,9 23,6 ± 2,2 0,013
Na (mEq/L) 135,5 ± 4,4 136,5 ± 2,5 0,374
K (mEq/L) 3,9 ± 0,8 4,5 ± 0,7 0,019
Hb (g/dL) 9,8 ± 1,7 9,2 ± 1,2 0,141
Ht (%) 29,9 ± 4,5 28,7 ± 3,7 0,295
Leucocitos (/mm3) 9175,2 ± 6234,3 9448,6 ± 6120,1 0,872
Linfocitos (/mm3) 2402,1 ± 1542,7 3519,4 ± 2977,4 0,128
Plaquetas (103/mm3) 279,19 ± 132,60 211,75 ± 127,41 0,063
LDH (U/L) 710,3 ± 583,8 1134,5 ± 1562,3 0,364
Ur (mg/dL) 22,5 ±11,3 28,2 ± 15,1 0,107
Cr (mg/dL) 0,5 ± 0,19 0,52 ± 0,2 0,781
Albumina (g/gL) 3,6 ± 0,6 3,7 ± 0,5 0,594
AST (U/L) 39,8 ± 26,7 123,1 ± 189,9 0,008
ALT (U/L) 25,3 ± 21,5 77,9 ± 102,8 0,001
TFGe (ml/min/1,73m2) 102,2 ± 36,7 77,0 ± 32,8 0,011
Albumina, albumina sérica; ALT, alanina aminotransferase; AST, aspartato aminotransferase; Cr, creatinina sérica; Hb, hemoglobina; HCO3, bicarbonato sérico; Ht, hematócrito; K, potássio sérico; LDH, lactato desidrogenase; Na, sódio sérico; PCO2, pressao parcial do dióxido de carbono; pH, potencial hidrogeniónico sérico; Ur, ureia sérica; TFGe, taxa de filtracao glomerular estimada. Dados apresentados como média ±DP. Foram usados o teste t de Student e o teste de Mann-Whitney. Os valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
os principais sintomas eram idénticos aos de nosso grupo.15,16 Com relaccao á situaccao viral e imunológica, a maioria dos pacientes apresentou níveis elevados de carga viral média e contagem baixa de CD4, mas nao houve uma diferenca significativa entre os grupos.
Entre todas as crianccas no presente estudo, a hipocalemia foi observada em 22,2%. Também observamos que o potás-sio sérico médio era significativamente menor em pacientes com uso de TARV do que em pacientes sem uso de TARV. Esse distúrbio eletrolítico foi associado ao uso de antirretrovi-rais, principalmente tenofovir, muito provavelmente devido á sua nefrotoxicidade bem conhecida.17,18 De acordo com um estudo feito por Kohler et al., foi observado que a toxicidade renal do tenofovir e a consequente hipocalemia acontecem devido a anomalias ultraestruturais mitocondriais tubulares proximais induzidas por esse medicamento.19 Além disso, peso corporal menor e uma dose elevada do medicamento foram significativamente associados á nefrotoxicidade indu-zida pelo tenofovir em criancas infectadas por HIV do Reino Unido.20
Tabela 3 Comparacao da prevaléncia de LRA de acordo
com o uso de TARV
Dados apresentados como um número (percentual). Foi usado o teste qui-quadrado.
Os valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
Além da hipocalemia, a acidose láctica também foi relatada como consequéncia da toxicidade da TARV, especificamente pelos inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeos (ITRN). Essa é uma causa importante da acidose em pacientes infectados por HIV, tanto criancas quanto adultos.21,22 No presente estudo, observamos níveis médios de bicarbonato sérico menores em pacientes com uso de TARV do que em pacientes sem uso de TARV, o que indica maior incidencia de acidose metabólica no primeiro grupo. Adicionalmente, a toxicidade mitocondrial em células tubulares proximais é responsável por outra causa bem descrita de acidose em pacientes com HIV que usam TARV: a síndrome de Fanconi.23,24 Assim, a toxicidade da TARV provavelmente é a principal causa de acidose metabólica na presente coorte em vez de reducao da TFGe, pois o bicarbonato sérico era menor em pacientes com uso de TARV, que apresentaram níveis elevados de TFGe.
Outros achados interessantes no presente estudo sao níveis médios mais elevados de AST e ALT em pacientes sem uso de TARV em comparacao com os com uso de TARV, o que pode indicar lesao no fígado. De acordo com uma análise recente da doencca hepática em pacientes adultos infectados por HIV, existem diversos fatores relacionados á lesao hepática e ao HIV, incluindo a coinfeccao por vírus de hepatites B e C; esteatose e esteato-hepatite nao alcoólica (EHNA); mudanccas metabólicas como resistencia á insulina; toxici-dade hepática dos medicamentos, principalmente TARV; e também o efeito direto do HIV no fígado.25 Alguns desses fatores provavelmente contribuíram para a elevaccao de AST e ALT na presente coorte. Como níveis maiores de enzimas hepáticas foram apresentados pelos pacientes sem uso de TARV, a insuficiencia hepática provavelmente é devida a outras causas que nao a toxicidade dos medicamentos.
TARV Sem TARV P
(n = 43) (n = 20)
LRA 18 (41,86%) 15 (75%) 0,037
Sem LRA 25 (58,14%) 5 (25%)
Desde a introducao da TARV, as doencas crónicas, como a doenca renal, tem aumentado como causas importantes de morbidez e mortalidade de pacientes portadores de HIV. No presente estudo, observou-se que aqueles sem uso de TARV apresentaram um impressionante comprometimento da funccao renal e maior incidencia de LRA em comparaccao com pacientes com uso de TARV. Além disso, a LRA é uma complicaccao comum em pacientes adultos ambulatoriais infectados por HIV tratados com TARV e foi associada a insuficiencia renal anterior, níveis menores de CD4, Aids, coinfeccao por vírus de hepatite C e doenca hepática.26,27 Normalmente, o desenvolvimento da LRA nesses pacientes é multifatorial, incluindo sepse, medicamentos nefrotóxicos, deplecao de volume e uso de contraste radiológico.28
Na análise multivariada, o uso da TARV antes da internaccao foi um fator protetor contra LRA. Isso pode ser explicado pelos benefícios da TARV na reducao da carga viral e, depois, na reducao dos efeitos renais do HIV. Há evidencias para comprovar a eficácia da TARV na prevencao de nefropatia associada ao HIV e no atraso da progressao da doencca renal em estágio final (DREF) em pacientes adultos infectados por HIV.29 30
Em conclusao, a incidencia de doencca renal tem aumentado como uma importante complicaccao de longo prazo da infeccao por HIV em criancas em todo o mundo. A comparaccao entre os dois grupos mostrou que crianccas que usam TARV antes da internacao apresentaram TFGe maior, mas níveis menores de potássio e bicarbonato. O uso da TARV mostrou-se um fator protetor contra LRA. Esses achados poderao indicar que o uso de TARV antes da internacao preservou a filtraccao glomerular e reduziu a incidencia de LRA, mas aumentou o efeito colateral da medicacao, como hipocalemia e acidose metabólica renal, relacionadas principalmente a alguns antirretrovirais, como o tenofovir.
Limitacoes do estudo
As limitaccoes do estudo incluem alguns dados em falta devido á natureza retrospectiva da pesquisa e á seleccao de amostras, que teve como base apenas pacientes hospitalizados. Nao tivemos acesso á diurese das criancas, já que foi um estudo retrospectivo. Em geral, as unidades de cuidados nao intensivos nao registram de forma precisa a diurese, principalmente na populaccao pediátrica. Alguns dados antropométricos, como estatura e peso, também nao estavam disponíveis nos prontuários das crianccas, entao foi neces-sário obter alguns deles das curvas de crescimento da OMS para estimar a TFG com a fórmula de Schwartz. A duracao da TARV também nao estava disponível nos registros dos pacientes. A creatinina sérica de tres meses antes da internacao também nao estava disponível, entao assumimos uma TFGe básica de 120mL/min/1,73 m2 para todas as criancas, jáque nao apresentaram fator identificado de doencca renal crónica anterior e nao foi possível estimar a TFG real. Usar a LRA como resultado de interesse pode ter reduzido a precisao de resultados de regressao logística, já que o número de pacientes com LRA era limitado (apenas 33), mas nao prejudicou a importancia de achados de análise multivariada.
Financiamento
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Conflitos de interesse
Os autores declaram nâo haver conflitos de interesse.
Agradecimentos
Somos muito gratos à equipe de médicos, residentes, estu-dantes de medicina e enfermeiros do Hospital Sâo José de Doencças Infecciosas por prestar apoio técnico para desen-volvermos esta pesquisa e pelo atendimento excepcional aos pacientes.
Referencias
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