Caso Clínico Case Report
Filipe Monteiro1 Principio de autonomia: Direito a dispormos de nós
próprios até ao limite? A propósito de um caso clínico
Principle of autonomy: Right of self-disposal till the end? A case report
Recebido para publicagao/rece/Ved for publication: 08.07.23 Aceite para publicagao/accepted for publication: 08.12.31
Resumo
Todo o acto médico deve estar assente em principios éticos. Estes códigos de conduta que regem a rela^áo do médico com o doente sáo dirigidos ao médico (principio de beneficencia e náo maleficencia) ou orientados para o doente (principio de autonomia). Assim sendo, em determinadas circunstancias, pode haver alguma tensáo entre os principios. Tendo como ponto de partida um caso clínico, é feita uma reflexáo a atitude do médico numa situa^áo de conflito de principios, a luz de fundamentos éticos, bem como numa perpectiva jurídica.
Rev Port Pneumol 2009; XV (3): 529-536
Palavras-chave: Principio de beneficencia, principio de autonomia, consentimento informado, conflito de principios.
Abstract
The doctor-patient relationship should be established in ethical principles. The codes of conduct that guide the relation between the doctor and the patient are addressed to the physician (principle of beneficence and non -maleficence) or oriented to the patient (principle of autonomy). As such, in certain circumstances there can be some tension between the principles.
Based on a case report in a setting of principles conflict, ethical and legal considerations are made so far as the doctor's attitude is concerned.
Rev Port Pneumol 2009; XV (3): 529-536
Key-words: Principle ofbeneficence, principle of autonomy, informed consent, principles conflict.
1 Mestre em Bioética. Assistente Hospitalar Graduado de Pneumologia. Assistente Convidado da Faculdade de Medicina de Lisboa
Servigo de Pneumologia do Hospital de Santa Maria, Lisboa (Dir.: Professor Doutor A. Bugalho de Almeida)
Correspondencia:
Filipe Monteiro
Rua Poeta Bocage 14, 6.° D - 1600-581 Lisboa
Telefone: 217169297
E-mail: jfpmonteiro@yahoo.com
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Princípio de autonomiA Direito a dispormos de nós próprios até ao Limite?
a propósito de um caso clínico
Filipe Monteiro
Introduçâo
O exercício de medicina nas sociedades oci-dentais está, desde os tempos da Grécia An-tiga, assente em fundamentos éticos. Os principios de beneficencia e de nao maleficencia encontram a sua génese numa das primicias do juramento de Hipócrates: "Aplicarei os medicamentos para o bem dos doentes segundo o meu saber e nunca para o seu mal."
Mais recentemente, aos principios referidos foram acrescentados os princípios de autonomia e de justiça.
Até ao inicio de século xx, nenhum manual de deontologia médica fazia referencia ao princípio de autonomia, apesar de terem sido julgados dois casos em tribunal cível. No primeiro — o caso Slatter v. Baker & Sta-pletton —, que ocorreu em Inglaterra, em 1767, o doente foi obrigado a dar o seu con-sentimento para ser tratado. No segundo, que teve lugar em Liège, França, em 1889, a judicatura pronunciou-se pela primeira vez sobre a necessidade de existir consentimen-to do doente para qualquer intervençao a realizar pelo médico1.
Em 1914, nos EUA, foi explicitamente feita — pelo juiz Benjamim Cardoso — uma alusao à necessidade de o consentimento informado existir; afirmou este juiz que todo o adulto mentalmente capaz tem o direito a se pronunciar sobre o que poderá ser feito em rela-çao ao seu corpo ("Every human being ofadult years and sound mind has a right to determine what shall be done with his own body ")2. No entanto, foi apenas a partir dos Julga-mentos de Nuremberga que o princípio de autonomia se afirmou incontestavelmente. De resto, em termos filosóficos, a associaçao deste princípio à ética pode ser imputada a Immanuel Kant, filósofo alemao do século
xviii, o qual afirmava que "a autonomia do homem é o mais alto valor e condiçao limitante de todos os outros valores"3. O princípio de autonomia assenta numa disposiçao procedimental por força da qual o médico é obrigado a obter o consentimento do doente para a realizaçao de interven-çôes. Assim sendo, o consentimento para o acto médico é, para além de um princípio ético, uma obrigaçao jurídica. Na essência, espera-se que entre o médico e o doente haja um diálogo e nao uma impo-siçâo unilateral da decisao do primeiro. É obrigaçao do médico proporcionar ao doente toda a informaçao sobre a sua situa-çao médica e propor-lhe a terapéutica ade-quada, na expectativa de que este assimile a informaçao fornecida e decida de acordo com aquilo que ache ser o melhor para si.
Caso clínico
MARV, 53 anos, sexo feminino, tem paresia das cordas vocais desde os 38 anos, na se-quéncia de uma tiroidectomia parcial por doença de Graves.
Em Outubro de 2005 (01/10/2005), após uma infecçao respiratória intercorrente, de-senvolve um quadro de estridor com insufi-ciéncia respiratória aguda. Recorre ao Servi-ço de Urgéncia do Hospital de Sao José, onde recusa a intubaçao ou traqueostomia no sentido de aliviar o sofrimento respirató-rio em que se encontrava. É entao transferida para o Hospital de Santa Maria, dado ser este o hospital da sua residéncia. Ainda no serviço de urgéncia, uma laringos-copia indirecta apresenta "cordas vocais em posiçao paramediana inspiratória/expiratória com fenda glótica reduzida a 1 mm". Por agravamento do quadro clínico e uma imi-
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nente paragem respiratoria, a doente é sujeita a uma intuba^áo orotraqueal com um tubo de 5,5 mm de diámetro e é internada na uni-dade de cuidados intensivos respiratorios do servido de pneumologia. Ao 4.° dia de internamento (04/10/2005 ), a doente está acordada, lúcida, clinicamente estabilizada, com alguma ansiedade. É-lhe explicado o seu quadro clínico, a necessidade da traqueostomia, os riscos inerentes á mes-ma e as consequencias que poderáo ocorrer caso a intervengo náo seja efectuada. Tendo em considerado a ansiedade que a doente apresenta, esta é medicada com ansiolíticos e é pedida uma avalia^áo psiquiátrica. De acordo com a observado do psiquiatra, "a doente encontrava- se ansiosa, com humor moderadamente depressivo, sem actividade alucinatória/deliran te. O compromisso ansioso prevalecia sobre o depressivo. Revelava um estado reactivo ao internamento e á su-gestáo de traqueostomia. Em conclusáo, tratava-se de um estado ansiodepressivo reactivo moderado."
Apesar das explicares, a doente recusa o tratamento proposto.
Estávamos, assim, perante uma situa^áo em que a simples desintuba^áo poderia implicar a morte por asfixia e em que a manutengo do tubo endotraqueal, para além de estar limitada temporalmente, poderia dar origem a complicares, com a obstru^áo de seu lú-men por secre^óes bronquicas, tendo em considerado o seu tamanho.
Como deve actuar o médico numa situa^áo de conflito de principios?
Na situa^áo descrita, á luz de fundamentos éticos, assim como numa perspectiva jurídica, qual deve ser a atitude do médico?
No que diz respeito á ética, qual o princípio que deve prevalecer? Deve o princípio de autonomia, através do consentimento informado, ser um imperativo categórico e absoluto? Ou, pelo contrário, deve prevalecer o princípio de beneficencia? Em súmula, numa situado de conflito de princípios, qual a decisáo certa a tomar? E sob o ponto de vista jurídico, como deve pautar-se a actua^áo do médico? Será lícito náo cumprir a vontade do doente? Que con-sequencia penal poderá sofrer o médico quando se recusa a cumprir o desejo do doente (a náo realizado de um tratamento imprescindível para o manter vivo)? Vamos analisar estas dúvidas e reflectir sobre elas á luz de fundamentos éticos, bem como numa perspectiva jurídica.
Quais os fundamentos dos principios em confronto?
No que diz respeito ao princípio de beneficencia, este define-se, em termos sucintos, pelos seguintes deveres4:
1) o dever de náo causar dano;
2) o dever de prevenir o mal ou o sofrimento;
3) o dever de suprimir o mal ou o sofrimento;
4) o dever de fazer o bem ou de o promover.
No que diz respeito ao princípio de autonomia, exercido através do consentimento do doente e considerado na actualidade como um dos aspectos basilares da rela^áo médico-doente, este terá que satisfazer tres requisitos para que seja ética e legalmente válido3.
1) Ser voluntário
O consentimento náo pode ser obtido a partir de qualquer tipo de coa^áo ou da ma-
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nipula^áo da informado com vista a obter a adesáo do doente.
2) Cumprir o dever de informar
O médico deve informar e o doente deve compreender a informado fornecida. Em nosso entender, esta condi^áo é altamente aleatoria, porque depende quer do médico (possuir capacidade de transmitir a informado), quer do doente (ter capacidade de ajuizar a informado). Para ultrapassar esta dificuldade, confia-se que a informado seja a mais completa possível e seja usada uma linguagem simples e directa.
3) Ter suporte jurídico
O consentimento deve ter uma base jurídica, isto é, a pessoa em causa deve ser juridicamente capaz. Existem regras jurídicas diferentes, consoante o doente seja uma crian^a, um deficiente mental, uma pessoa confusa, etc. Além disso, considera-se boa norma que o pedido do consentimento con-tenha a indica^áo dos seguintes elementos:
• O diagnóstico, a proposta terapéutica e o prognóstico esperado;
• Os possíveis efeitos secundários associados ao tratamento, com os riscos e benefícios inerentes (em que os benefícios teráo que ser superiores aos riscos);
• As alternativas terapéuticas, com os seus riscos, benefícios e efeitos secundários;
• A dura^áo do tratamento e os custos fi-nanceiros.
Se é certo que, de um modo geral, se assume que a informado fornecida é entendida, tal pode ser comprovado através de formulado
de algumas perguntas. Neste contexto, deve também ser avaliado o grau de ansiedade do doente.
Existem, contudo, algumas circunstancias em que o doente náo tem capacidade jurídica (crianzas, doentes mentais ou comatosos, etc.) ou em que a situa^áo médica (urgén-cia) náo permite a espera do consentimento. Nestes casos, o consentimento pode ser ob-tido dos familiares ou do procurador nomea-do pelo próprio estado, sendo admissível a sua dispensa em situa^óes de urgéncia, em que é tido como presumido. No caso em análise, estamos numa situa^áo em que a obriga^áo moral referida nos enunciados do princípio de beneficéncia, nomea-damente no 2.° e no 3.° (o dever de prevenir e de suprimir o mal ou o sofrimento), colide com o princípio de autonomia, dado que a doente, apesar de devidamente informada da proposta terapéutica e das consequéncias da sua náo efectiva^áo, náo consentira a intervengo.
Perante uma situa^áo de conflito de princí-pios, alguns autores sáo de opiniáo de que deve haver uma hierarquiza^áo dos mesmos. Assim, para Diego Gracia Guillen, o princí-pio de náo maleficéncia e o da justi^a sáo princípios absolutos, colocados no 1.° nível, enquanto o princípio de beneficéncia e o de autonomia sáo de 2.° nível. Estes deveráo ser respeitados após o cumprimento dos pri-meiros5.
Neste caso, náo estando em conflito princí-pios de níveis diferentes, a recomendado do autor náo é aplicável.
Para outros autores, os conflitos devem existir relativamente a valores e náo a deveres, visto que admitir a existéncia destes seria admitir um comportamento diferente e in-compatível para a mesma situa^áo, o que
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seria moralmente inaceitável6. Ainda de acordo com este autor, a autonomia nao é um valor absoluto e, como tal, o principio que impóe o seu respeito nao é incondicional. Este pode ser legitimamente limitado pelo respeito por outros valores, assegurados por outros principios, nomeadamente o de beneficencia.
Nesta perspectiva, no caso em estudo, é eticamente aceitável o nao respeito pelo desejo manifestado pela doente. No que diz respeito a natureza da obriga^áo médica em relado ao 'Código Deontológi-co', o artigo 39, ao aludir aos métodos que implicam algum risco, refere: "Antes de adoptar um método de diagnóstico ou terapeutico que considere arriscado, o médico deve obter, de preferencia por escrito, o con-sentimento do doente ou de seus pais ou tutores, se for menor ou incapaz, ainda que temporariamente."7
Ainda em relado a esta temática, a Associa-^áo Médica Mundial, em 1981, na 'Declarado de Lisboa', que aborda os direitos do doente, definiu como um dos principios a ter em considerado no acto médico o direi-to de o doente aceitar ou recusar o trata-mento8.
Em termos legais, segundo a legislado portuguesa: "Os utentes tem direito a decidir, receber ou recusar a prestado de cuidados que lhes é proposta, salvo disposi^óes especiais da lei." ('Lei de Bases de Saúde' — Lei 48/90 -, Base XIV, número 1 alinea b)9. Para analisar estas disposi^óes especiais da lei, atentemos no 'Código Penal Portugués', nos seus artigos 150 e 156. Assim, no artigo 150, que diz respeito a in-terven^óes e tratamentos médico-cirúrgicos, no n.° 1, lé-se: "as ofensas e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e
da experiencia da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada com in-tençao de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesâo ou fadiga corporal, ou perturbaçao mental, nao se consideram ofensa à integridade física." No n.° 2, acrescenta-se ainda: "As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem inter-vençôes ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida, perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, sao punidas com pena de prisao até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes nao couber por força de outra disposiçao legal." Por sua vez, no artigo 156, que se refere a intervençôes e tratamentos médico--cirúrgicos arbitrários, pode-se ler, no número 1, que "as pessoas indicadas no artigo 150.° que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervençôes ou tratamentos sem consentimento do paciente sao punidas com pena de prisao até 3 anos ou com pena de multa". Deste articulado pode--se concluir que a actividade médica está, basicamente, delimitada pelo consentimen-to do doente. Contudo, no seu ponto 2, sao referidas as situaçôes em que, apesar da ilici-tude, nao há punibilidade, presumindo-se o consentimento: se o consentimento "só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde" ou em situaçôes imprevistas que podem surgir durante um acto cirúrgico e que obriguem a alguma alteraçao à proposta inicialmente delineada. Nao há também punibilidade (de acordo com o artigo 157) sempre que prevalece privilégio
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terapéutico, que é indicado quando se verifica que a "informado completa pode criar angustia diminuindo a autonomia, e com ele a recusa para um acto médico ou cirurgi-co, sem o qual há risco grande de vida ou de fundo imprescindível". Do exposto, constata-se que, apesar de o acto médico estar na sua génese delimitado pelo princípio de autonomia, por meio do con-sentimento informado, esta delimitado é mais aparente do que real, dado que sáo previstas na lei situares em que o náo cumpri-mento do consentimento informado náo está sujeito a punibilidade, apesar da ilicitude. Contudo, no caso que estamos a estudar, a recusa foi manifestada após o pedido do consentimento, situado náo prevista quer no ponto 2 do artigo 156 quer no artigo 157, os quais sáo válidos nas situa^óes de escusa de consentimento e náo de recusa. Náo nos parece também que esta situado possa ser equiparada a uma directiva anteci-pada de vontade (testamento vital/living will). Nesse cenário, e de acordo com o parecer N.° P/05/APB/06 da Associa^áo Portuguesa de Bioética, o médico pode náo anuir em aceder ao desejo manifestado pelo doente em relado a determinado tratamen-to e justificar a sua atitude pela duvida quanto a "actualidade" da directiva10. O paradoxo deste caso residia no facto de que o acatamento da decisáo da doente, pela equipa médica, levaria a que a evolu^áo do quadro clínico tivesse como desenlace, mui-to provavelmente, a morte. E, nesta circunstancia, poderia a equipa ser acusada, ao abrigo do artigo 10 do 'Código Penal Portugués', de um crime de "comissáo por ac^áo e por omissáo".
Assim, se, em termos éticos, a atitude médica de náo respeitar a vontade manifestada
pela doente pode ser defendida por meio dos fundamentos éticos orientadores do acto médico, já o mesmo náo acontece em rela-^áo a natureza jurídica, que, no mínimo, deixa no ar muitas duvidas e incertezas. A pergunta de fundo que se póe é a de saber se podemos dispor de nós próprios até ao limite e no fim. Por outras palavras, o res-peito pelo princípio de autonomia deve ser um imperativo categórico? Náo cabendo no ambito deste artigo a aná-lise exaustiva do princípio de autonomia, parece- nos, contudo, que será interessante proceder-se a um breve exame histórico das origens e da evolu^áo deste princípio. As primeiras referéncias ao princípio de autonomia, enquanto princípio ético a ser salvaguardado no acto médico, remontam ao século xviii, como referimos. Contudo, a sua implementa^áo só viria a ganhar um impulso muito forte após os julgamentos de Nuremberga, nos quais alguns médicos ale-máes se defenderam das acusa^óes pelas atrocidades cometidas alegando o interesse das experiéncias realizadas para o conheci-mento médico.
A consciencializa^áo de que era inaceitável a experimentado no ser humano sem o seu consentimento voluntário ficou expressa no 'Código de Nuremberga' (1947). Apesar da existéncia deste código, continua-ram a ser feitas, nos anos 60 e 70, várias denuncias de experimentado no homem, situares que ocorreriam nos Estados Unidos, principalmente entre grupos sociais vulne-ráveis e marginais11.
No sentido de evitar estas posturas abusivas em relado a experimentado médica em seres humanos, a comunidade médica, na 'Declara^áo de Helsínquia', em 1964, enun-ciou os princípios-base que compóem a na-
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tureza normativa de respeito pelo doente na investigado e experimentado. De acordo com aquela declarado, o consen-timento informado deve ser apreciado sob duas perspectivas completamente diferentes: o consentimento em situado terapéutica e o consentimento em situado de investigado e experimentado. Na situado de investigado e experimentado, o consentimento do doente é absolutamente necessário, principalmente quando se trata de participar numa investigado sem beneficio terapéutico. Con-tudo, em caso de investigado com fim terapéutico, é permitido ao médico reservar in-forma^óes que julgue serem susceptiveis de prejudicar o sujeito doente. Em relado ao consentimento em situado terapéutica, como também já referimos, este tem a sua origem mais próxima na de-cisáo do juiz de um tribunal americano, em 191412. As decisóes americanas foram seguidas pela jurisprudéncia canadiana, pela francesa e pela inglesa. Constata- se, assim, que o dever do médico de obter o consentimento do doente resulta de uma obrigado jurídica, modulada de pais para pais.
A pergunta fundamental é: por que razáo, em situado puramente terapéutica, deve o médico pedir o consentimento do doente antes de aplicar ou prescrever um tratamen-to? O dilema ético subjacente a esta questáo reside na tensáo entre o principio de autonomia, orientado para o doente, e o principio de beneficéncia, dirigido ao médico. Numa análise da evolu^áo histórica dos principios éticos, constata-se que o principio de beneficéncia, orientado para a actuado médica, tinha como contraponto o principio de náo maleficéncia — o célebre primum non nocere —, que aconselhava o mé-
dico a agir com prudéncia na escolha do tra-tamento.
A ascendéncia e implementa^áo progressi-vamente mais frequente do principio de autonomia, em detrimento do principio de beneficéncia, podem, em nosso entender, ser explicadas sob duas perspectivas, que se explanam em seguida. Em primeiro lugar, a visáo do bem ou o principio de beneficéncia náo tem a mesma leitura dos dois lados — o lado do médico e o lado do doente.
Como se sabe, o principio de beneficéncia tem as suas raizes históricas nos primórdios da medicina, na era greco-romana, e assen-tava, entre outros, no pressuposto de que o doente náo tinha outra alternativa se náo curvar-se perante a decisáo médica. Como tal, os aconselhamentos éticos eram dirigidos na sua totalidade ao médico. Na actualidade, e principalmente na socieda-de anglo-saxónica, o médico náo é nem deve ser o único detentor da informado clinica relativa ao doente. Pelo contrário, esta informado é perten^a do doente, que necessita dela para fazer a sua escolha em relado a propostas terapéuticas que lhe sáo apresentadas. É no exercicio do livre-arbitrio que se exprime plenamente o principio de autonomia. Em segundo lugar, a afirmado do principio de autonomia tem também a sua razáo de ser no contributo do próprio médico, quan-do este exige o consentimento do doente antes de iniciar qualquer atitude diagnóstica ou terapéutica. Este procedimento deve-se, em nosso entender, as cada vez mais frequentes acusa^óes de má prática médica, que levam cada vez mais ao exercicio da medicina defensiva.
Esta tensáo entre o principio de beneficéncia e o principio de autonomia esteve na origem
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de alguns articulados do 'Código Deontoló-gico', bem como do 'Código Penal', os quais enunciámos na exposi^áo do caso clínico. Contudo, como também referimos, existem zonas cinzentas que náo estáo equacionadas nos dois códigos em causa.
Epílogo do caso clínico
Ao 10.° dia do internamento e ao fim de várias tentativas, a doente acaba por dar o seu consentimento. A traqueostomia é realizada no dia seguinte e a doente tem alta uma semana depois, encontrando- se bem até a mais recente consulta de seguimento.
Reflexao final
O exercício do principio de autonomia atra-vés do consentimento informado em situa-^áo terapéutica é uma prática corrente nos países anglo-saxónicos e tem vindo a implementar-se progressivamente nos do Sul da Europa, incluindo Portugal. Contudo, como verificamos no caso exposto, existe na comunidade médica alguma resisténcia a acatar integralmente e sem reservas a vontade manifestada pelo doente. Esta relutáncia tem a sua génese na ambiva-léncia que ocorre pelo facto de o conheci-mento técnico-científico estar de um lado e a aplica^áo ou náo deste conhecimento, com todas as consequéncias daí resultantes, do outro lado.
Na prática, nestas situa^óes, quando possí-vel, o médico pode socorrer- se dos vários clausulados que lhe permitem ultrapassar a manifesta ou suposta oposi^áo do doente a
determinados tratamentos. Mas, quando tal nao seja possível, nao será legalmente lícito o médico ir contra a vontade do doente, tal como poderia ter feito a equipa no caso descrito, se a doente náo tivesse aceitado o tra-tamento indicado?
Neste contexto, será o consentimento informado um mito? Uma mera figura de retórica? Ou um subterfugio de conveniéncia? Ou simplesmente um principio confinado?
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